sábado, novembro 25, 2006

A maçã no escuro - Clarice Lispector

A ilimitada liberdade o deixara vazio, cada gesto seu repercutia como palmas na distância: quando ele se coçou, esse gesto rolou diretamente para Deus. A coisa mais desapaixonadamente individual acontecia quando uma pessoa tinha a liberdade. No começo você é um homem estúpido tendo a mais a grande solidão. Depois, um homem que levou uma bofetada na cara e no entanto sorri beato porque ao mesmo tempo a bofetada lhe deu de presente uma cara que ele não suspeitava. Depois, aos poucos, você começa, sonso, a fazer casa e a tomar as primeiras intimidades impudicas com a liberdade: você só não voa porque não quer, e quando se senta numa pedra é porque em vez de voar sentou-se. E depois?

Que era inteiramente vazio, para falar a verdade. Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria. E no entanto, oco, mudo, rejubilava-se. A coisa estava ótima.
Então, para começo de conversa, a pessoa se sentava na pedra no domingo.
E de tal modo, com perverso gosto, o homem se sentia agora longe da linguagem dos outros que, por um atrevimento que lhe veio da segurança, tentou usá-la de novo. E estranhou-a, como um homem que escovando sóbrio os dentes não reconhece o bêbado da noite anterior. Assim, ao remexer agora com fascínio ainda cauteloso na linguagem morta, ele tentou por pura experiência dar o título antigamente tão familiar de “crime” a essa coisa tão sem nome que lhe sucedera”.

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