domingo, outubro 29, 2006

O toque do olhar


Via um pedaço de um Deus nos olhos das pessoas. Daqueles próximos a si em alma, via uma luz sair dos olhos diante dos seus. Tivera momentos em que a luz fora tão forte que a cegara. Até que ponto a claridade ilumina ou cega? Não sabia... Esse era seu medo e seu segredo. Quantas vezes desviara o olhar com medo de enxergar Deus novamente... Em um dos períodos de cegueira, a escuridão perdurou por quatro meses, acompanhada de lágrimas que não se sabia de onde vinham e por qual motivo... Não pôde sair de casa nesse período... Chorava e não via nada.

Passado o tumulto, o Deus do olhar das pessoas também sumiu. Não entendeu, mas foi um alívio. Seu fardo finalmente saíra de sua vida. Podia olhar nos olhos das pessoas sem cegar-se. Tudo perdeu um pouco do brilho – é fato -, pois sabia que esse olhar era também sua riqueza, mas o caminho tornou-se mais leve. Às vezes, procurava um Deus no olhar de alguém aqui ou acolá... Nada... Até que esqueceu. Esqueceu que um dia viu um Deus em olhares alheios. Rumou na escuridão da luz terrena com um sorriso de quem não sabe e com um olhar de quem tudo vê e pouco enxerga. Cegueira velada.

O conforto da conformidade de seu olhar foi então subitamente ameaçado quando ele apareceu. “Era quimera e parecia ser o amor... Era quimera. Graça flutuante, figurava estar sentada. A cabeça era magra, coberta de cachos, junquilhos, de onde o sol jorrava. As asas mantidas fechadas tocavam o chão, longas, emplumadas. O corpo intangível. Seus olhos, castanho verde cinza dourados e escarlates. Me olhavam como se fosse desde sempre. A límpida palavra. Era belo e assim se apresentava.” ("Pequeno Oratório do Poeta Para o Anjo" da escritora Neide Arcanjo)

Pela primeira vez, sem que ela soubesse, alguém vira um Deus nos seus olhos. Conversaram horas a fio sem que ele revelasse o que via diante de si. Ela não imaginava que seu olhar velado desvendava toda a luz de uma divindade. Alheia a isso, não pôde compreender quando ele revelou o fato. Subitamente, um mundo de confusão invadiu sua alma. Presente e passado, retomado em sua memória, misturavam-se em medo e ânsia por sentir novamente a luz de um Deus se manifestando diante de seus olhos. E agora os olhos eram os seus.

Então ele cegou-se. Um dia. De repente. Ela sabia que isso iria acontecer. Afastaram-se pois não podia mais vê-la, por mais que quisesse senti-lo. Insistiu, sem retorno. Seguia na rua desviando olhares com medo que vissem a luz de um Deus em seu. Ficaram assim por meses, ela desviando o olhar e ele tentando ver. Passaram pela vida. Ele recobrou a visão e ela voltou a olhar. Reencontraram-se. Ao acaso. Poucas palavras do que existia antes havia restado. E evitavam olhar-se.

Mas teve um único momento em que o olhar deles se encontrou. Encontro de verdade. Diante dele, os olhos dela começaram a marejar de lágrimas. “Era a beleza e parecia a beleza. Era a beleza. Filho pródigo abandonou a casa. De seus vestígios de musa. De seus lampejos de anjo. Brotaram todas as lágrimas. A dor, incrustada na curva da porta esperou por muito tempo a volta. Depois. No rubi deste coração. Escreveu seu nome.” ("Pequeno Oratório do Poeta Para o Anjo" da escritora Neide Arcanjo). Mais humana, voltara a enxergar.

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